Ao longo dos séculos, multifuncionalidade é característica comum às moradias.
RIO – Numa época em que não havia encanamentos para levar a água até em casa, eram comuns os banhos públicos em termas onde, muitas vezes, homens e mulheres compartilhavam as banheiras. Hoje, numa mesma casa, cada morador tem sua suíte privativa e a intimidade garantida. Essa evolução dos cômodos, como o banheiro, salas e quarto, é traçada pela jornalista espanhola Anatxu Zabalbeascoa no livro “Tudo sobre a casa” que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Gustavo Gili.
— De maneira geral, apartamentos pequenos são comuns na Europa há décadas. Com pouco espaço, você é obrigado a escolher: ou tem privacidade ou espaço — diz Anatxu, em entrevista ao GLOBO por e-mail.
Ao longo dos tempos, a casa realmente precisou se adaptar aos costumes e rotinas de seus moradores. Não à toa, na era da informação e das famílias estendidas, vem se tornando o espaço da versatilidade, destaca a autora:
— Uma grande porcentagem da família moderna é formada por pais divorciados, com filhos em comum ou não, e as casas mais bem preparadas para receber essa diversidade são as mais versáteis, aquelas que podem mudar conforme nós mudamos. Aquelas que parecem vivas, justamente por essa capacidade de se adaptar.
Autor do prefácio do livro, o arquiteto e professor da USP João Whitaker lembra que essa capacidade de adaptação é muito presente em casas mais pobres:
— Da precariedade surgem, muitas vezes, soluções inovadoras. E nas classes de renda mais baixa, famílias inteiras vivem em um ou dois cômodos, então a adaptação é uma necessidade.
Privacidade surge no século XVIII Já na classe média, essa adaptação se torna necessária tanto nos cômodos quanto no mobiliário. No período medieval, quando a casa se resumia à sala — usada para trabalhar, cozinhar, dormir — e havia poucos móveis, a arca era a principal peça por sua multifuncionalidade: servia para guardar roupas, alimentos e utensílios, era assento e ainda podia passear pelos cômodos. Hoje, a carência de espaço dita os modismos de móveis, que assumem várias funções, e das áreas sociais integradas.
— Quando juntamos cozinha, jantar e estar, criamos um espaço maior que serve a vários propósitos. E ao fazer isso, deixamos de precisar de duas mesas. Podemos ter apenas uma, grande, ou extensível. A arquiteta Patricia Urquiola sempre diz: “casa pequena, mesa grande”. Assim, você pode comer enquanto seu filho estuda. Essa ideia da vida comunal está também na origem da casa e sinto que temos que voltar a ela — analisa Anatxu.
Para a arquiteta Helena Lacé, professora do curso de design de interiores da Escola de Belas Artes da UFRJ, contudo, a intimidade ainda é algo importante:
— Nossas casas ainda são bastante compartimentadas. Os quartos ainda guardam nossa privacidade. É que a noção de intimidade não existia até o fim do século XVIII. Os banhos públicos, por exemplo, começaram na Roma Antiga, foram proibidos em Constantinopla e voltaram a se espalhar pela Europa medieval, quando as pessoas podiam não só se banhar, mas cortar o cabelo, jantar. Uma variedade de usos que culminou no que foi considerado promiscuidade e acabou sendo proibido.
Já dentro das residências, na falta de sofás — criados no século XVIII —, era nas camas confortáveis, que se recebiam as visitas. No Renascimento, era comum a dama de companhia da rainha dormir com ela na cama. E, nas classes mais pobres, várias pessoas da família dividiam — e ainda dividem — a mesma cama.
Projetos de apartamentos com plantas livres, com sistemas modulares, tendem a crescer
Hábitos parecidos em classes diferentes não acontecem à toa. O livro “Tudo sobre a casa” mostra como, ao longo dos séculos, as inovações que surgiram nas classes dominantes foram sendo assimiladas pelas mais pobres. No quesito decoração, o que era moda no design de interiores dos palácios franceses do século XVIII logo se espalhava pelas cidades europeias. E, em ritmo mais lento, ganhava também as casas menos abastadas. Foi o que aconteceu com o sofá, criado nessa época e até hoje central na casa, e com a própria sala como espaço de convivência e estar.
Hoje, no Brasil, isso pode ser percebido na atuação do mercado imobiliário. Mudanças como a integração de áreas sociais são um exemplo. Mais recentemente, começaram a surgir, em empreendimentos de luxo, as plantas livres em que o comprador define como será a configuração do espaço doméstico.
— As plantas livres ainda estão começando, com sistemas modulares que oferecem possibilidades de transformações. Agora, quando isso será oferecido mais largamente, é difícil dizer porque ainda é algo muito caro no Brasil — exemplifica o arquiteto João Whitaker.
Redução de custos e recursos, aliás, são apontados como os desafios da casa nos próximos anos. Para a autora Anatxu Zabalbeascoa, é preciso definir em que mundo queremos viver:
— Temos dois desafios: construir casas que nos permitam economizar energia e água e dar à humanidade casas dignas. Ambos deixam em nossas mãos criar o mundo onde queremos viver. E acredito que, se não criarmos soluções mais sustentáveis, não teremos futuro. Para a arquiteta Helena Lacé, da UFRJ, a sustentabilidade tem força, inclusive, para mudar a arquitetura interior das residências.
— A cozinha já é hoje mais uma área social que de serviço e acho que a tendência é que esse espaço do serviço vá desaparecendo mesmo. A lavanderia, por exemplo, tende a virar um armário como já acontece em casas americanas. E precisamos aprender a usar menos e melhores eletrodomésticos, até para poupar o espaço que é cada vez mais restrito nas cidades. E, com isso, acredita Helena, os condomínios com maior infraestrutura e grandes espaços de convivência devem permanecer, pelos próximos anos, como alternativa à ocupação das ruas, ainda violentas nas grandes cidades.
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